Quadrado Textil

Quadrado Textil
Lenço (latin linteum, -i, pano de linho) s.m. Peça de roupa, que consiste num pedaço de tecido, quadrado, com que se abriga o pescoço ou a cabeça.

terça-feira, 31 de maio de 2016

Sabor de Chocolate

Era ainda terça-feira e o corpo já reclamava descanso. Estas classes de cycling são quase violentas. Já terminado o treino, o bar do ginásio era o ponto de encontro de quase todos os torturados sobre os pedais.
Como sempre, Rute fechava a sua ligeira refeição, após um simples iogurte e uma peça da fruta, com um pequeno chocolate.
- Nunca falha o chocolate! - Disse-lhe discretamente.
- Não resisto. Devo repor as energias - respondeu-me com um leve sorriso.
- Trazes sempre o mesmo tipo de chocolate ou é apenas impressão minha? - Insisti curioso.
- Trago. Gosto deste. Tenho de variar. Nunca calhou.
- Devias fazer uma prova de chocolate. - Sugeri em modo de graça.
- Uma prova de chocolate?! Nunca imaginei que se fizesse.
- Se há provas de vinho, queijo ou azeite não há razão para não haver de chocolate.
- Adorava fazer uma. - Suspirou inocentemente.
- Não deve ser difícil. Havemos de tentar - respondi discreta mas nada inocentemente.
- Num dia antes de um esforço como no outdoor do fim do mês.
- Boa ideia. Vais no próximo? Eu vou.
- Claro que vou. Não perco um.
- Então fica combinado. Na véspera fazemos uma prova. - Sentenciei de seguida, tentando a minha sorte.

Prolongamos a conversa oficializando a prova para a sexta-feira que precedia o dia do outdoor.
Seria no meu terraço, na minha casa recuperada, na zona antiga de Lisboa.
- Vou comprar os chocolates durante a semana. Um de cada. De todos os tipos mas sem misturas de avelãs, amêndoas, passas ou outros. - Cientificamente sugeri.
- E eu que preciso levar?
- Vontade de saborear chocolate.
- É fácil eu tenho sempre. Mais alguma coisa?
- Um agasalho que poderá fazer frio no terraço.
- Também tenho. Mais nada?
- Um lenço. - Disparei à queima-roupa, sem sequer respirar.
- Um lenço como? - Respondeu surpreendida.
- Quadrado, de algodão, suave, e que não seja grande. Se tiveres algum assim já serve.
- Não tenho. Nunca usei muito esse tipo de acessórios. Até vai ser engraçado procurar. Nem vou perguntar para que fim servirá. Parece que sabes bem o que queres.
- Surgiu só agora. - Devolvi meio comprometido.
- Então fica mesmo combinado. Nunca imaginara fazer algo assim.

Dias mais tarte, enquanto acumulava diferentes chocolates no supermercado toca o telemóvel.
- Olá Rute. Apanhaste-me em flagrante! - Adiantei-me após verificar o toque.
- Olá. Em flagrante de quê?
- A comprar mais chocolates.
- E eu acabei de comprar o lenço que pediste. É muito suave e giro. Até estou a usar. - Afirmou inconsciente da sedutora provocação.

Véspera do outdoor. Já sonhava acordado em a ver de lenço. Ao abrir a porta os meus olhos não conseguiram deixar de, instantaneamente, procurar se usava o sensual acessório. Mas nada. Tinha de ser cauteloso para não me denunciar.
Sorridente entrou e fomos directamente para o terraço. Vista aberta para o Tejo, sobre os telhados, no meio de vasos plantados de flores, onde reina, no centro, uma grande mesa antiga de ferro esmaltado e tampo de pedra.
Lá coloquei um grande jarro de água, uma travessa grande, uma faca, guardanapos.
- Que vista e que ambiente acolhedor - Afirmou encantada com a vista e com o próprio terraço iluminado apenas pelos reflexos da cidade.
- Que bom que gostas. Coloca a carteira sobre uma cadeira.

Cinquenta e três chocolates sobre o sólido tampo de pedra.  Aproximava-se o momento mais crítico e ansiado. Tento disfarçar a essa ansiedade controlando os meus movimentos e calculando, prudentemente, o que digo. Rute ajudou.
- E agora? - Perguntou descontraída.
- Agora sentas-te enquanto preparo tudo.
- Fico a ver o que fazes? - Perguntou ingenuamente.
- Não me parece que vás ver. Tens aí o lenço?- Respondi sorrindo com malícia denunciando a minha intenção.

Rute parecia animada com a ideia e abrindo a carteira entregou-me o lenço. Peguei no lenço e desdobrei-o. Era um lenço um pouco naif muito suave. Dobrei cuidadosamente sobre a mesa fazendo uma fita, segurei delicadamente com ambas as mãos e aproximei dos seus olhos. O momento tornou-se intenso.
- Pronta?
- Sim... - Respondeu expectante.

Atei o lenço com muito cuidado após o ter aproximado pausadamente dos seus expressivos olhos.
- Encosta-te na cadeira enquanto preparo tudo.
- Assim vou ficar muito curiosa.
- Vais ficar com os sentidos mais apurados e o paladar mais refinado. - Afirmei pedagogicamente.
- Ainda mais? Vais é deixar-me louca.

Organizei todos os chocolates colocando ordenadamente, um a um, sobre a mesa, enquanto conversávamos com alguma naturalidade, tendo em conta que estava vendada. Após arrumados foi ainda necessário abrir as embalagens e cortar uma amostra de cada um. Por esta altura Rute estava perfeitamente confortável e eu controlado apesar da sedutora visão da companhia de lenço sobre os olhos.
- Vamos começar? - Sugeri.
- Sim, vamos. Já estou ansiosa e com fome. 

Coloquei a primeira amostra na sua mão.
O seu indisfarçável sorriso deixava transparecer o seu desejo de embarcar nesta experiência. Colocou o chocolate na boca como se comungasse. 
- Agora só tens de avaliar com rigor. Dá- me uma nota de 1 a 10.
- 7. Mas era pequeno.
- Verdade. É necessário que seja. Não estas a ver a quantidade de amostras que preparei.
- Claro que não vejo com o lenço que me ataste nos olhos.
- Não me provoques. Vamos continuar a prova.
- Provocar? Mas eu é que estou vendada!
- E muito sensual - descaindo-me novamente por estar a ficar num estado menos defensivo.
- É a venda que me deixa assim? - Depois tens de me contar melhor. 
- Depois... Agora continuamos a prova. - Retorqui fugindo ao tema da provocação que deixara escapar.
- Então dá-me mais chocolate. - Devolveu com luminoso sorriso. 
Uma a uma as amostras eram minuciosamente saboreadas e avaliadas enquanto anotava os resultados e mais saboreava a sedutora imagem da Rute vendada com aquele lindo lenço. As suas mãos ficavam cada vez mais pegajosas com o chocolate que ia ficando derretido.
- Tenho de te limpar as mãos. Estás cheia de chocolate.
- Já preciso. Sinto tudo a pegar. 

Segurei suavemente a sua mão direita, de palma para cima e verti um pouco de água. Passei levemente o guardanapo num misto de caricia e limpeza. Repeti mais duas vezes até eliminar todo o chocolate colado. Fiz o mesmo com a sua mão esquerda. Aquele momento deixou no ar um sentimento de primavera. Continuamos a prova mas agora era eu que lhe colocava as amostras entre os lábios para que não ficasse com os seu dedos achocolatados. Rute prosseguia a sua doce avaliação de cada uma das amostras. Passo a passo, seus lábios mais tocavam nos meus dedos, mais eu provocava desviando-as subtil e propositadamente fazendo que os perseguisse na escuridão, pelo lenço imposta. A cada amostra aumentava o contacto, a provocação, a desinibição e, principalmente, a intensidade do momento. Enquanto as amostras finais da prova não se esgotam já se confunde se são as amostras ou os meus dedos a serem degustados.
- Chegamos a última amostra - avisei baixinho colocando-a muito levemente sobre sua língua.

Rute selou seus lábios sobre os meus dois dedos como se quisesse eternizar aquele momento. O chocolate já desaparecido deixara espaço para sua língua explorar, acariciando denunciadamente, os dedos aprisionados. Suavemente retiro-os sentindo uma indiscreta sucção que oferece resistência. Ficamos imóveis durante silenciosos minutos como se esperássemos por algo. Rute ainda se deliciava com o residual sabor a chocolate e mais me deliciava vê-la assim serena de lenço sobre os olhos. Peguei num copo e verti água de alto para que se ouvisse a água a escorrer enquanto a fixava observado a sua reacção. Sempre atenta e curiosa como se esperasse por mais alguma surpresa. Coloquei o copo entre as suas duas mãos acolhendo-as entre as minhas. 
- Já deves estar a precisar disto. - Afirmei enquanto desatava o lenço dos seus olhos.
- Sim. E muito. - Confirmou entre dois goles de água. 

Na mesa repousavam dezenas de embalagens abertas e uma folha com o registo detalhado de todas as classificações da prova. Rute agarrava o lenço na mão esquerda como se quisesse guardar aquele momento. Juntos e sentados à mesa endireitamos as embalagens dos chocolates e agrupamos ordenadamente. Rute pousara o lenço sobre a mesa deixando-me numa discreta luta para desviar o olhar por não me sair da mente a sua sensualidade de quando estava vendada. Em tom de conversa pergunta-me com naturalidade:
- E a provocação?
- Qual provocação? - Sabendo bem a que se referia pensando que já estaria esquecido.
- Disseste para não te provocar e continuar a prova. Que te provocava?
- Como estavas... - Sem saber bem como responder.
- Vendada? A prova teve alguma intenção escondida?
- Não. Pensei que assim seria mais intenso. Foi juntar o útil ao agradável. Não gostaste? - Perguntei hesitante.
- Adorei. Mesmo. Mas fiquei curiosa.
- Estava a ficar preocupado. Que bom  que gostaste.
- Foi fantástico. Nunca imaginei fazer nada assim.
- E se fossemos comer uma sopa na Casa das Sopas? É leve depois de tanto chocolate.
- Boa ideia! Mas...
- Mas o quê?
- Mas estás a fugir às perguntas - Apontou acutilante.
- As perguntas...
- Sim. Provocou-te ver-me vendada com este lenço? - Exibindo-o com a sua mão.
- Sim... Muito - Respondia após um breve silêncio.
- Foi estar vendada ou o lenço em si?
- Queres saber muito - Tentei ganhar tempo.
- Quero. E tu podes-me dizer muito. Conta-me.
- Foram ambos. Vendada com esse lenço ficaste tão sensual... Fantástica neste ambiente. - Confessando sem hipótese.
- E se usar o lenço também te põe assim?
- Sim, há formas de usar que me deixam mas seduzido e outras não tanto mas é sempre muito sedutor.
- Eu senti que havia qualquer coisa. E se eu usasse assim na cabeça? - Aproximando o lenço de mim como provocação e depois atando na sua cabeça em fita.
- Isso seria muito perigoso. - Ironizando.
- Eu gosto do perigo. E que mais formas gostas de ver? - Percebendo, muito bem, o meu estado.
- Tantas...
- Um dia destes temos de fazer uma prova de lenços. Eu uso e tu avalias. - Picando-me endiabrada.
- Não me provoques
- Lá estas tu novamente. - Sabendo que me controlava.

Instintivamente, levantando um pouco as mãos, como escudo, ficando encostado ao seu tronco. Sinto que se encosta a mim. Entrego-me a um abraço que Rute corresponde deixando perceber, pelo contacto, as formas do seu corpo. Dá-me um beijo molhado no pescoço. Quando eu ia procurar os seus lábios afasta-se subitamente.
- Depois... - Disse discretamente
- Depois?!... - Inquiri perdido.
- Sim. Vamos às sopas. - Afastando-se lentamente.

Saímos como se nada tivesse passado deixando o "depois" para  ...depois.


QT






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