Quadrado Textil

Quadrado Textil
Lenço (latin linteum, -i, pano de linho) s.m. Peça de roupa, que consiste num pedaço de tecido, quadrado, com que se abriga o pescoço ou a cabeça.

segunda-feira, 21 de agosto de 2017

Um Conto Muito Clássico

Um conto clássico começa como sempre:

Era uma vez...

Um rei e uma rainha, de um muito distante reino. No seu gigante palácio, de nove torres e imensos jardins, vivia também a princesa Liliana, sua filha.
Apesar de doce e bela a princesa, próxima de completar vinte anos, ainda não tinha pretendente à altura do seu estatuto. Neste momento era essa a grande preocupação do reino. Reunido o conselho real para tomar medidas em relação ao grave tema foi deliberado após intenso debate que, pelo vigésimo aniversário de Liliana, seria oferecido um grandioso banquete com o respectivo baile e convidada toda a nobreza dos reinos vizinhos bem como os cidadãos mais notáveis deste reino. As listas feitas e os mensageiros a galope faziam adivinhar a grandiosidade do acontecimento.
Não se falava de outra coisa e num ápice chegou aos ouvidos da feiticeira Aurora a lista dos convidados do reino. Ao contrário do que significa seu nome esta perigosa mulher nada ilumina. Na sua charrete, logo pela manhã cedo, dirigiu-se imparável ao palácio.
Apesar da pequena dimensão do reino os monarcas não recebiam sem aviso com a devida antecedência. Barrada nos portões do palácio, com duas afiadas lanças cruzadas à sua frente, a sua ameaçadora ira crescia sob o atento olhar das sentinelas. Sem alternativa ficou à espera até que a carruagem real saísse. Paciência não era sua característica mas, não havendo outra opção, apenas restava esta forma de chegar aos reis.
Como era real hábito os monarcas saiam, de coche, ao final da tarde, para percorrer a capital quando Aurora se coloca na frente, de braços ameaçadoramente levantados, ordenando numa estridente voz:
- Parai essa carruagem.

Os cavalos assustados, com as patas dianteiras erguidas não avançaram mais e, num instante, apontando a varinha à princesa, lançou a sua vingança:
- Lithos Malditus.
- Detenham essa bruxa. - Ordenou o rei em desespero.
- Não me convidastes para a festa e agora quero ver como a ireis dar.
As sentinelas imediactamente tentam agarrar a feiticeira pelos braços que, por entre estranhas palavras de magia negra, se transforma em corvo e voa para longe, de varinha mágica no bico, deixando as suas vestes caídas no chão.
Com a princesa sem sentidos, enquanto era transportada para seus aposentos, a rainha num inconsolável pranto e o rei impotente para solucionar esta catástrofe foi, de imediacto, chamada a fada Madalena, madrinha de Letícia, que a acompanha e protege desde o berço. Por sua ordem ficaram apenas as duas no quarto de porta fechada até que, muito cuidadosamente, Madalena sai do quarto da princesa fechando rigorosamente a porta atrás de si.
- Como está a princesa. - Perguntou angustiada a rainha sob o atento olhar do rei.
- Parece-me bem mas preciso me certificar do que fez Aurora.
- Lançou-lhe um feitiço como "lito maldito". - Respondeu a rainha.
- "Lithos Malditus"... É o que pensava. Não foi um feitiço. Foi uma maldição.
- Não consegue retirar essa maldição? - Inquiriu o rei.
- Não tenho poderes para isso mas consigo alterar. Para quebrar a maldição só algo muito forte. Unicamente o amor verdadeiro de um príncipe. Precisamos de ter muitos cuidados.
- Mas que faz esta maldição? E como ajudamos?
A "Lithos Malditus" é a maldição da petrificação. Quem observar a cor dos seus olhos transformar-se-á em pedra.
A princesa deverá ficar no bungalow do bosque, vai precisar de roupas discretas e vários lenços.
Deverá usar um lenço na cabeça para poder sair incógnita sem se saber que é a princesa.
Sempre que houver risco de se cruzar com alguém terá de cobrir os olhos e permanecer vendada até estar só.
Mas assim como poderá conhecer um príncipe se nem os seus lindos poderá mostrar? - Perguntou a rainha preocupada.
- Não perca a esperança, majestade. Serei a sua companhia todo o tempo. Não percamos tempo. Cada minuto aqui é um risco.
- E para vós? Não é perigoso.
- Não. As fadas estão imunes a estas maldições. Agora deveis abandonar esta área para sairmos. Majestades... - Fazendo uma vénia.
De volta ao quarto, com Letícia já preparada, de lenço sobre os olhos Madalena dá-lhe o braço para a levar ao pequeno e discreto coche de passeio. Não é seguro que se saiba que a princesa fica fora do palácio mesmo que protegida pela mágica varinha da sua fada madrinha.
Instaladas no bungalow ambas devem habituar-se ao inesperado estilo de vida. Todos os dias Letícia e a fada acordam cedo para alimentar os animais que servem de, disfarce, ocupação, companhia e de alarme para situações inesperadas.
De lenço na cabeça a princesa mantem os seus belos e bem cuidados cabelos resguardados da natureza e principalmente dos olhares.
Os mais reputados costureiros usaram os melhores algodões da arábia e as mais suaves sedas do oriente para fazer os lenços que tanto protegem a princesa.
Mais tarde e sempre acompanhada pela fiel fada, a princesa passeia pelo real mata por entre lagos e riachos. Raramente se cruza com pessoas mas pontualmente algum cavaleiro atravessa a região.
Os dias passam e não há solução á vista. A data da grande festa já não está longe.
Estava a princesa, de livro na mão, recatadamente sentada numa grande e lisa rocha, polida naturalmente pelos elementos, quando subitamente ouve um cavalo a chegar.
- Permite-me que dê de beber ao meu cavalo, minha menina? - Perguntou um jovem cavaleiro.
- Claro que sim, meu senhor. - Virando-se para o lado oposto enquanto discretamente puxava o lenço mais para a frente da testa.
- Não necessitais esconder vossa formosidade de mim.
- Não é de vós que me escondo. São os meus olhos muito sensíveis ao pó e à luz. - Sabendo muito bem responder sem de denunciar.
- Perdoe-me se fiz a minha montada levantar pó.
- Não tem que se preocupar. Nada de mal fizestes vós.
- Sois muito gentil. Um bom dia e até breve.
- Obrigada, nobre cavaleiro. Até breve.

Foi um momento que deliciou Letícia. Tinha saudades de falar com pessoas para além da sua fada madrinha que se mantivera, sempre discretamente, por perto.
O jovem cavaleiro abandonou o local mas sem conseguir evitar virar-se para trás, diversas vezes e contemplar aquela misteriosa mulher escondida sob um lindo lenço.
Passados dois dias, sem que a sensual imagem daquela jovem lhe saísse do pensamento voltou ao mesmo local. Embora não a tivesse encontrado como esperava, após um curta busca, deparou-se com o bungalow. Assumiu uma confiante postura para disfarçar a ansiedade.
Bateu na porta, com o cuidado para se ouvir mas sem parecer agressivo.
- Que desejais, Senhor? - Inquiriu, a fada, apos abrir a pequena portinhola da grande porta da entrada.
- Habita aqui a donzela que ante ontem estava junto ao riacho, de lenço no cabelo? Gostaria de a convidar a me acompanhar num passeio.
- Quem deseja saber?
- João, filho de Baltazar, do reino a norte da cordilheira.
- Um momento senhor. - Cerrando a portinhola de imediacto.
- Princesa, o jovem cavaleiro pergunta se o quer acompanhar num passeio?
- Claro que quero. Mas como? Não é perigoso?
- Tenho solução. - Pegando num pequeno lenço rosa, de suave algodão.

Dobrou-o meticulosamente, em fita e docemente atou á volta dos olhos de Letícia. Foi buscar um lenço maior, em algodão e seda, dobrou em triângulo e atou sobre a cabeça com o nó sob o queixo como tem estado a usar diariamente.
- Assim não vai querer passear comigo, madrinha minha. - Lamentou a princesa insegura.
- Há fraquezas que, misteriosamente, se transformam em forças. Ide descansada. - Comentou enigmática.

Nunca tivera um conselho errado da sua fada madrinha. Mesmo assim sentia-se como se saltasse para um buraco sem fundo.
Acompanhada à porta, segura ao braço da fada porque o lenço que lhe esconde os olhos também não a deixa ver, Letícia é levada à companhia do jovem cavaleiro.
- Menina... - Cumprimentou, o príncipe, com reverência. - Disfarçando a estranheza por causa do lenço que lhe venda olhos.
- Senhor... - Respondeu Letícia do mesmo modo.
- Seria de vosso agrado me acompanhar num passeio pelo bosque?
- Tenho todo o gosto.
- Tomai a minha mão, por favor. - Esticando o braço de modo a oferece-la.

Instintivamente a incógnita princesa levantou a sua mão, à procura do contacto, pousando-a delicadamente sobre as contas da mão do príncipe e entregando-se à sua protecção
Ainda cercados por alguma formalidade saíram por um dos muitos caminhos, sob o verde manto de folhas, que o bosque oferece.
O lenço que lhe escondia o cabelo, tão bem colocado, captava permanentemente o olhar do príncipe. Adicionava uma aura de mistério multiplicado pela venda que a deixava dependente. Mas ainda mais que atraente era a sensualidade que o conjunto dava. O que inicialmente parecia uma barreira mais o deixava interessado.
Sem poder ver as pequenas irregularidades do caminho Letícia pontualmente desequilibrava-se tendo necessidade de se segurar ao braço do cavaleiro, fugindo da formal postura. Os pequenos contactos multiplicavam-se implicitamente consentidos por ambos.
Ainda com reservas apenas falaram de trivialidades até á volta mais de uma hora passada.
Já perto do bungalow a despedida estava eminente.
- Posso voltar a vos convidar amanhã? - Perguntou arrojado.
- Terei todo o gosto. Pela tarde que de manhã tenho as minhas tarefas.
- Farei como desejais.

No dia seguinte, logo ao inicio da tarde o cavaleiro marcou a sua presença. Preparada da mesma forma, de lenço na cabeça perfeitamente atado e com outro a lhe vendar os olhos.
Entregue pela fada e cordialmente apoiada nas costas da mão do cavaleiro iniciaram o passeio. Após escassos minutos entrelaçaram-se os dedos deixando suspeitar de algo mais que cordialidade.
- Obrigada novamente pelo convite para passear. - Disse delicadamente a princesa.
- Eu é que vos agradeço a companhia. Certamente tem tido muitos.
- Sois gentil mas assim ninguém me olha. - Contou com tristeza.
- Assim como? - Esticou propositadamente o assunto aproveitando a deixa.
- Assim de lenços na cabeça e sobre os olhos.
- Sois muito formosa. Nada o pode esconder. E mais formosa ficais com esse belo lenço na cabeça. Mesmo sem ver vossos olhos imagino-os. Muito me agrada a forma como se aproxima e segura em meu braço por estar despojada da vossa visão.

Era indisfarçável o rubor nas bochechas de Letícia que denunciava o seu interesse.

- Devo confessar que sem nada ver apercebo-me de pormenores que mal sentia. O som do riacho, do vento e dos muitos animais, os diferentes cheiros do bosque, a textura de vossa mão segura e a vossa protectora voz.

De frente para Letícia, suavemente segurando as suas duas mãos e levemente acariciando-as, puxa-as para si encostando-as a seu peito.
Com os sentidos livres mais alerta Letícia deliciada apercebe-se do forte e ritmado bater de coração do jovem cavaleiro. Mesmo sabendo que nada mais se pode passar disfruta do momento. A respiração dele denuncia uma proximidade que não consegue recusar, até que seus lábios se tocam num leve mas longo beijo que sabe lhe ser proibido.
Subitamente, afasta-o energicamente.
- Ide. Ide e não voltai. - Ordenou chorosa.
- Mas porquê? Ofendi-vos? Suplico-vos que me perdoais. - Desculpou-se sem perceber.
- Não me ofendestes. Eu não sou quem pensais. Ide já.
- Senhora... - Despediu-se com uma vénia e retirou-se respeitando o pedido.

Sentada na erva, em profundo choro, aguardou até se certificar que estava só. Apenas nessa altura desatou o lenço da cabeça de forma a poder seguidamente desatar o lenço que lhe cobria os olhos. Voltou a atar o lenço na cabeça, sem o menor cuidado desprezando a sua aparência. Estava quebrada, cansada de se esconder. Assim voltou a casa.
Estava sua fada madrinha pacientemente sentada no alpendre, a bordar, sem disfarçar um misterioso sorriso.
- Olá, minha querida. Porque tendes esse olhar tão triste?
- Madrinha minha, tudo está tão difícil. O jovem cavaleiro beijou meus lábios. Foi tão ardente mas não o posso ver novamente. Seria perigoso para ele e o feitiço numa mais seria quebrado. Vou ter de viver aqui para sempre assim escondida e detesto estes lenços. - Puxando o lenço da cabeça e atirando-o para o chão.

A princesa inconsolável corre para o quarto e fica sentada junto à janela, a olhar para fora, vendo um mundo que nunca poderá apreciar.
A fada chega, ainda com o enigmático sorriso, trazendo o lenço que fora atirado nas mãos.
- Minha querida. Não vos quedais triste.
- Como posso não me quedar? - Perguntou quase em desespero.
- Este lenço que dissestes detestar acabou de salvar-vos. - Colocando o lenço nas mãos de Letícia
- O que não me contastes, madrinha minha?
- O jovem cavaleiro é um príncipe. Tinha um selo real na sela do seu cavalo...
- Então?... - Interrompeu a princesa ansiosa.
- Sim. A maldição foi quebrada.

Brilharam os olhos da princesa com o alívio dado pelo fim daquela terrível maldição, agarrada ao lenço com força e encostando-o à cara como se o acariciasse agradecida
- Vamos já para o palácio. Quero dar as boas novas.

A felicidade contagiou o todo o palácio que, agora, já podia voltar a preparar a grande festa do vigésimo aniversário, combinada para três dias depois e que estava prestes a ser cancelada.
Em seus aposentos a princesa era a única que não estava feliz.
- Que vos preocupa? - Perguntou a fiel fada madrinha.
- O príncipe. Será que vem á festa? E se vir como nos reconhecemos? Ele apenas viu uma camponesa com os olhos vendados e eu nada vi.
- Vi-o eu. Mas estarei longe do baile, na tribuna das fadas. Mas há solução. Levo o vosso lenço e deixo-o pendurado na tribuna. Quando ele de aproximar para vos convidar a dançar o lenço deixo cair. Novamente o lenço vos salva.
- Madrinha minha, que inteligente sois vós! Fico-vos eternamente agradecida.

Chegados ao dia da grande festa os nobres são apresentados, à entrada, com toda a formalidade. São diversos os príncipes pretendentes mas a princesa não consegue perceber se quem sonha ver está presente.
Todos pouco falaram na circunstancial apresentação mas nenhuma voz lhe soara conhecida.
O baile está ê aberto com o rei e a rainha a solo no salão, como manda o protocolo. A segunda dança é para todos. Os pretendentes mais afoitos apressam-se a convidar a princesa Letícia para dançar. Alguns muito bem-apessoados e outros nem tanto. Mas o olhar de Letícia foge para a tribuna onde seu lenço continua sem cair. Teria sua madrinha esquecido? Será que o príncipe cavaleiro não veio? A dúvida era agonizante.
Até que um príncipe, com ar de quem tem pouca vontade de dançar e o faz por obrigação friamente a convida quando repara no lenço que cai da tribuna planando até um, dos muitos, vasos floridos que delimita a zona da dança, junto ao chão.
Sem o poder demonstrar, por estar no centro de todas as atenções e sem estar segura que seria o príncipe certo tinha, discretamente, de o confrontar e fazer com que a reconhecesse.
Subitamente lembrou-se de uma forma de o dizer sem se comprometer. Apenas teria que pouco esperar até que a dança a levasse ao local certo.
- Engraçado! Está aqui caído o lenço que uso para passear no bosque. - Sussurrou cheia de segundas intenções, ao passar sob a tribuna das fadas.

O olhar do príncipe, mais por cortesia que interesse, desviou-se para o lenço e seguiu a dança sem se pronunciar até que parou, olhou bem para o lenço caído e para as mãos da princesa. Tudo se juntava num puzzle de pistas. Ele agora sabia e colocava a suave mão de Letícia sobre seu peito, como o fizera dias antes.
No final da grande festa a escolha foi simples e incontestada.

 E viveram felizes...


QT

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