Quadrado Textil

Quadrado Textil
Lenço (latin linteum, -i, pano de linho) s.m. Peça de roupa, que consiste num pedaço de tecido, quadrado, com que se abriga o pescoço ou a cabeça.

terça-feira, 19 de junho de 2018

Clássica e Ousada



Não era a primeira vez que a via a passar no jardim. Pela hora de almoço era comum nos cruzarmos em sentidos opostos. Tem sido impossível deixar de sorrir quando a vejo, muito segura de si, de lenço na cabeça, atado de forma clássica e óculos de sol. Certamente já teria sido, por ela, detectado. É indisfarçável. Tanto que, discretamente, me sorri de volta. É raro ver uma mulher jovem com esta indumentária. No entanto e neste caso, o lenço na cabeça até parecia o acessório mais natural do mundo. Não aparenta ser campestre nem religioso, não destoa com o resto da elegante indumentária e transparece um ar sereno e confortável.
A sua imagem ficara definitivamente gravada na minha mente. Queria saber mais dela. Queria saber porque ousava usar assim um lenço.
Num dos dias em que cruzamos lá passava com os seus óculos de sol e o habitual e sensual lenço na cabeça.
- Bom dia. - Discretamente arrisquei.
- Bom dia. - No mesmo tom respondeu sem hesitar.

Seguimos nossos caminhos opostos com o gelo quebrado e o precedente aberto. Mesmo assim não era suficiente. Passo a passo o cumprimento evoluiu. Passou do tímido "bom dia" para o sorridente "bom dia, tudo bem?", até que, inusitadamente, deixei escapar a pergunta:
- Eu gostaria de a entrevistar. Será que pode um dia?
- Entrevistar-me? - Respondeu surpresa.
- Sim. Se não se importar.
- E qual seria o motivo da entrevista?
- Os lenços que tão bem usa. - Pensando que desta estaria definitivamente tudo perdido.
- Os meus lencinhos?! Pode ser. Nunca pensei ser motivo para entrevista.
- Excelente! Obrigado. E quando poderia ser?
- Dá-me perfeitamente por esta hora. Pode ser já amanhã.
- Fica combinado. Fica à sua espera, a esta hora, aqui mesmo. Muito obrigado.
- De nada. Até amanhã. - Despediu-se sorridente.

Nem acreditava como tudo aconteceu. Parecia simpática e acessível.
Contei os segundos até à hora marcada do dia seguinte. Tinha agendada uma conversa com uma verdadeira musa. A sua sensualidade era mais que inspiradora.
Naturalmente cheguei com muita antecedência. Não a queria deixar à espera nem um minuto. Seria um desperdício. De qualquer modo a ansiedade não me deixava fazer mais nada.
Pouco depois, no seu melhor estilo, aproxima-se pelo jardim, de lenço em tons de preto e encarnado, calças a combinar encarnadas, blusa preta e seus óculos de sol.
- Olá. Bom dia. - Cumprimentei mantendo um postura casual.
- Olá. Cá estou como combinado. Como fazemos?
- Sugiro que nos sentemos, à sombra, num dos bancos do jardim.
- Está bem.
- Não posso deixar de elogiar o seu estilo. Essa forma clássica e, ao mesmo tempo, ousada de usar o lenço na cabeça, a confiança que demonstra é uma perfeita afirmação estética.
- Obrigada. Que completa observação que quase me deixa corada. - Respondeu com alguma surpresa.
- Sentamos aqui? - Sugeri ao chegar a um banco bem situado, entre dois grandes e vetustos plátanos.
- Parece-me bem. - Aceitando a sugestão.

Este momento, em que tenho a hipótese de conversar abertamente com um mulher que usa lenços, sempre foi um desejo reprimido. Agora, que posso, tenho de aproveitar todos os segundos e não deixar que o desejo provoque constrangimentos.
Não sei como iniciar. Sempre imaginei uma infinidade de perguntas que se evaporam perante esta sensual mulher.
- Permite-me que lhe pergunte o nome? - Inquiri para não ir directamente ao assunto.
- Alice. - Respondendo sem hesitar.

Era o nome óbvio. Sempre que a vejo de lenço na cabeça tenho a certeza que vem do pais das maravilhas.

- Eu escrevo apontamentos sobre a especial sensualidade da mulher que sabe usar lenços. Era impossível deixar de reparar na forma confiante como os usa. Por isso me atrevi a lhe pedir que me concedesse esta entrevista.
- Fiquei surpreendida. Nunca imaginei que os meus lenços tivessem tanto interesse.
- Têm muito. Pena que de não exista a noção de como é sensual. Vamos iniciar para não lhe roubar demasiado tempo?
- Sim vamos. Pode começar. - Respondeu confiante.

A primeira pergunta foge-me como água entre os dedos. Temo dizer algo que lhe passe uma má impressão e, num rasgo de inspiração, lembro-me que posso me orientar por ordem cronológica.
- Usa lenços à muito tempo? - Disparei inseguro.
- Assim com frequência, na cabeça, há uns três ou quatro anos mas cheguei a usar até em criança e na adolescência
- Lembra-se das primeiras vezes que usou?
- Tenho a vaga memória de levar, na primária, um lenço de bonecos, na cabeça, nos dias de mais sol. Minha mãe insistia para que eu usasse. Eu até gostava. Principalmente quando comparava com alguma colega. Era curioso porque dizíamos estar de chapéu embora fosse lenço.
- E na adolescência?
- Nessa altura apenas usava em fita para prender o cabelo. Não era frequente.

Estava, agora, mais descontraído. A aproximação cronológica resultara. A conversa direcionava-se para o ponto certo. Percebia-a o sua satisfação em estar no centro da atenção.
- Em adulta quando começou a usar com mais frequência?
- Na universidade. Logo pelo segundo ano. No primeiro não arrisquei ser diferente. Usava muito no pescoço.
- Que tipo de lenços? Compridos ou quadrados?
- Quadrados.
- Grandes ou pequenos?
- Dependia do tempo. Maiores para mais frio e menores para menos. Gosto imenso do seu conforto.
- E como usava?
- Dobrava em fita. Os maiores gostava, e ainda gosto, de dar duas voltas ao pescoço e nó à frente ou ligeiramente descaído ao lado. Os menores com nó à frente ou atrás estilo chocker.
Usei muitas vezes.
- E assim como está usar? O que a fez usar assim como a tenho visto?
- Foi um dia de vento intenso. Usava um lenço grande no pescoço e meu cabelo estava a ser massacrado. Resolvi desatar do pescoço e atar na cabeça. Não só protegeu o meu cabelo como me deu um inesperado e envolvente conforto. Depois disto arrisquei usar pontualmente quando o tempo estava agressivo. Na verdade estava a gostar e não resistia a alguns elogios de amigas que não tinham coragem de usar assim. Também puxou um pouco pelo meu lado rebelde.
- É ousado. Mas fica com um maravilhoso charme - Não resisti em dizer.
- Obrigada. - Aceitou sorridente.
- E actualmente? Com que frequência usa assim na cabeça?
- Tirando no verão, quando, poucas vezes, uso um pequeno lenço, dobrado em triângulo, atado atrás da nuca, diria que duas ou três vezes por semana embora aconteça usar toda a semana por causa do tempo ou simplesmente porque me apetece. Mas vario os lenços a combinar com a roupa.
- O que a faz usar assim? De manhã, ao vestir, como decide?
- É uma pergunta interessante. Normalmente procuro um complemento na minha gaveta dos lenços no sentido de aconchegar e dar o toque final. Mais que no sentido de acessório decorativo. Embora também o veja assim.
Por outro lado gosto da afirmação que o lenço permite.
- Tem, então noção, da ousadia que é usar assim um lenço.
- Claro. Por isso gosto. É como muito bem me disse, no início da entrevista. Para além de clássico é ousado. É um saboroso agridoce.
- E sabe que discretamente olham para si? Uns estranham, por actualmente ser pouco comum e outros, como eu, adoram - Deixando escapar mais que devia.
- Obrigada - Percebendo que subtilmente a elogiara - Eu sinto-me bem com isso. Um sorriso simpático compensa mais de dez críticas.
- E tem muitos lenços?
- Ai, tenho. Confesso que tenho - Deixando escapar algum embaraço.
- Sabe quantos?
- Devo já ter passado os cem.
Ocupam pouco espaço, não deixam de servir dependendo da dieta, não são peças muito caras e gosto tanto que por vezes não resisto e compro um. Também me oferecem e o resultado é o que se vê.
- O que a atrai num lenço quando o vê numa loja?
- Varia muito. Pode ser o padrão, a suavidade do tecido ou simplesmente combinar com alguma peça de roupa.
- Em que alturas pensa logo em usar usar um lenço?
- Dias ventosos. Na cabeça ou no pescoço.
- E há alguma altura em que nunca usaria?
- Sim. Num velório.
- Mas, nos velórios, até há a antiga imagem das mulheres de lenço preto na cabeça.
- Elas usam como demonstração de tristeza e modéstia. Eu uso precisamente no sentido oposto. Embora pudesse parecer adequado por quem vê contraria o que sinto num momento desses. Não estaria bem comigo. E lenços pretos só uso justos, no pescoço, em fita e de nó atrás. Não combina com o meu cabelo escuro se usar na cabeça.
- E quando não usa costuma levar algum consigo?
- Sempre. Para isso servem as carteiras. Nunca se sabe quando será preciso.
- Tem a noção da sensualidade que um lenço pode acrescentar a uma indumentária?
- Acreditava que, pela forma como completava, de algum modo acrescentava algum valor mas uma sensualidade, propriamente dita, nunca tinha pensado dessa forma, nem conhecido quem pensasse. Pelo pelo que me pergunta começo a me aperceber.

O tempo voava e percebi que Alice já olhava para as horas.

- Para terminar posso tirar umas fotos? Se preferir mantenha os óculos de sol. Fica mais anónima.
- Pode, claro. Onde me coloco?
- Basta ficar aqui, mais ao lado, sentada, onde tem luz.

Sem maior preparação tirei quatro fotografias, duas de frente, uma de perfil e uma de trás. Pequenos tesouros.

- Vamos agora? - Perguntou já um pouco preocupada com o tempo.
- Claro. Muito obrigado pela entrevista. - Respondi imediactamente para que não perdesse tempo.
- De nada. Foi divertido.

Levantamos-mos e seguimos os nossos opostos sentidos.



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