Quadrado Textil

Quadrado Textil
Lenço (latin linteum, -i, pano de linho) s.m. Peça de roupa, que consiste num pedaço de tecido, quadrado, com que se abriga o pescoço ou a cabeça.

domingo, 19 de maio de 2013

Clara


- Nem para carregador serves! - Disse Clara divertida 

Já tinha andado mais de um quilómetro, na areia da praia, com Clara ás cavalitas. A queda era inevitável.
Levantei-me e ajudei-a a sentar-se. Fiquei a contemplar enquanto ajeitava o seu lenço, que tinha no cabelo, dobrado em triângulo.
Clara era especial, não só como amiga; nunca tinha conseguido andar. Tinha algo que não lhe permitia sentir as pernas. Algo, que diagnóstico após diagnóstico, ficava sempre por descobrir. Não se percebia se seria neurológico, psicológico ou fisiológico.
Adorava ir à praia comigo. Não só pela praia e pela nossa amizade cúmplice mas, principalmente, por eu não sentir pena dela, por não a tratar como frágil ou diferente. Era o único local onde não levava a cadeira de rodas.
As cavalitas eram o meio de transporte eleito. Levava-a até à água , mesmo com ondas grandes, ou a passear, sempre desse modo.
- Lá estas tu com aquele olhar. Não consegues disfarçar. - Provocou sabendo que eu não resistia a olhar quando mexia no seu lenço.
- Eu bem tentei disfarçar, mas tu sabes... - Retorqui um pouco embaraçado.

Ficamos um bocado ao sol. Até demais. Já estava a torrar.
- Já estas mais descansado? Vamos para perto de água?
- Vamos

Montou nas minhas costas e ficamos a vaguear numa zona aparentemente mais rasa porque, nesse dia a água estava  invulgarmente fria e as ondas estavam a crescer.
Subitamente, um inesperada onda derruba-nos.
Clara divertia-se com tudo. Perto de mim nem pensava em potenciais ricos. Estas surpresas naturais davam-lhe uma sensação de liberdade.
Recuamos um pouco ficando sentados a metros da linha de água.
Clara desatava o lenço da cabeça que ficara molhado e descaído e atava no pulso para não perder. Pelo canto do olho não perdia nenhum destes movimentos.
Mas houve uma fração de segundo que me despertou a curiosidade: no momento que a onda fria nos atingiu, sem que estivéssemos à espera, pareceu-me sentir uma subtil contração na perna de Clara.
Será que é imaginação minha?
Agora a mesma imaginação já trabalha para testar esse evento.
Na semana seguinte voltávamos à praia. Fui busca-la a casa e como sempre vinha com o seu grande chapéu e lenço amarrado, em fita, à volta.
Pelo caminho desafiei:
- Vamos, hoje, caminhar até mais longe?
- Vamos? Tu é que carregas. Eu quero. - respondeu segura.

Seguindo o nosso ritual levei Clara às cavalitas até à areia e depois fui buscar as toalhas, o seu saco e a minha mochila geleira.
Após curto repouso passei ao plano.
- Vamos preparar para caminhar?
- Claro. Passas-me o chapéu?

Clara desatou delicadamente o lenço, de bolinhas, dobrado em fita, que decorava, o seu chapéu. Desdobrou sobre a toalha, refez a dobra em triângulo, dobrou novamente no lado maior para reduzir o tamanho do triângulo e atou na cabeça por trás da nuca.
Não conseguia mover o olhar.
- Gostas, não gostas? - provocou, sem malícia.
- Claro, Clara. - brinquei tentando disfarçar um pouco, por estar em público.
- Estou pronta.
- Boa! Levas a mochila?
- Levo. A mim não me pesa - brincou novamente.

Baixei-me para que Clara se agarrasse ao meu pescoço e levantei-a às cavalitas.
Comecei a caminhada com prudência. Não me preocupava com quedas na areia. Tinha, apenas de poupar energias que queria ir longe.
Com diversas pausas pelo meio chegamos à zona da praia, junto de dunas, onde não se vê vivalma.
Baixei-a deixando-a sentada no chão e sentei-me ao lado. Pousamos a mochila atrás e retirei as águas.
- É bonita, esta parte. - comentou com entusiasmo
- Pois é. - respondi enquanto bebia.
- Não ficaste cansado demais? - inquiriu preocupada
- Valeu a pena.
- Vamos à água?
- Mais daqui a pouco. Pode ser?
- Claro. Precisas descansar.
- Preciso é do teu lenço.
- Do lenço?! Está bem. Como queres? - respondeu retirando o lenço do cabelo.
- Em fita.

Com a delicadeza e destreza habitual desatou o nó, dobrou com minúcia em fita e entregou-me nas mãos.
- Vou vendar-te por algum tempo. Pode ser?
- Pode. - respondeu com confiança.
- Pronta?
- Vamos jogar à cabra cega? Apanho-te num instante. - ironizou sem complexos

Lentamente atei seu lenço sobre seus olhos. Adoro este momento...
Clara nunca recusava nada. Gostava da aventura quando se sentia segura. E, para meu orgulho, era comigo com quem se sentia mais segura.
- Vês alguma coisa?
- Nada.
- Nada mesmo? Nem um cantinho? - Quis certificar-me.
- Juro que nada. Ataste o lenço muito bem.
- Ainda bem...
- E agora? - curiosa sobre o que acontecia.
- Agora nada. Ficamos á conversa baixinho para ouvires melhor o mar.

Embora não tivesse ficado completamente convencida a ideia até lhe soava bem. Ficou assim mais de uma hora e como paramos numa distante zona onde não passava ninguém estava confortável.
O calor apertava e Clara, estava com os sentidos apuradíssimos e, finalmente, pediu:
- Dás-me a  água?
- Vou buscar.
- Foi por isso que trouxeste a mochila geleira?
- Sim. - Respondi baixinho

Enquanto retirava as garrafas deixava, propositadamente, todo o gelo cair sobre as suas pernas.
- Ai! Que estas a fazer? - Perguntou levando a mão ao lenço que a vendava.
- Espera, não tires... - respondi de imediato.
- Mas...
- Estás a sentir alguma coisa?
- Não sei. Qualquer coisa nas pernas.
- Mas tu não sentes as pernas. Não ponhas lá as mãos.
- Mas senti. Tira-me a venda.
- Não, ainda não. Conta-me mais. Ainda sentes alguma coisa?
- Uma espécie de arrepio distante nas pernas. Estou confusa. Que fizeste?
- Tens todo o gelo da mochila térmica nas pernas..
- O gelo?! - Questionou antes de se remeter a um profundo silêncio.

Deixei-a com tudo na mesma. Sentada, de olhos vendados e todo o gelo nas pernas.
Clara continuava silenciosamente pensativa mas mais calma.
Após alguns minutos tirei o gelo para não correr riscos de ferir a pele. Ficando apenas vendada.
- Que fizeste?
- Tirei o gelo. Vamos á água.
- Vamos. Há quanto tempo estamos aqui ao sol?
- Duas horas.

Coloquei cuidadosamente a não sobre o nó do lenço que a vendava para desatar.
- Não. Não tires o lenço. Leva-me assim. Se não te importas leva-me vendada.
- Claro que não me importo. Ficas fantástica assim vendada.
- Tonto...

O mar continuava frio com na semana anterior mas completamente parado.
Com Clara as cavalitas entrei muito lentamente na água. Tivemos demasiado tempo ao sol.
- Ajuda-me a boiar.
- Vem para a frente.

Clara ficou deitada na água com a minha mão nas costas a equilibrar. Deixei-a em silêncio a flutuar, vendada. A sentir o mar, a sentir se sentia...
Com o passar do tempo já sentia falta de aquecer ao sol.
- Voltamos a terra? - Sugeri.
- Sim... - Concordou baixinho.
- Eu senti... - Confessou  insegura.
- Eu sei.
- Não foi só o gelo. - Insistiu.
- Não?!
- Foi a água também.
- Serio?
- Sim. Foi espetacular. Pouco mas senti.
- Frio?
- Acho que sim. Mas sinto no corpo todo.
- Já estamos há muito na água. É melhor voltar a terra firme.
- Sim... - Concordou extenuada.

Com o método habitual dirigimo-nos até junto da mochila e sentamo-nos na areia.
- Tiras o lenço agora e dás-me os óculos de sol?
- Claro.

Retirei os óculos da bolsa lateral da mochila e desatei o lenço, com o cuidado de lhe colocar logo os óculos, por ter estado muito tempo vendada.

- Obrigada, obrigada... Foste fantástico. Como imaginaste tudo isto?.
- Foi desde a semana passada, que me pareceu teres tido um reflexo nas pernas, quando uma onda fria nos surpreendeu.
- Foi? Mas não senti nada.
- Foi. Então passei estes dias a imaginar e planear.
- Por causa desse reflexo?
- Pensei que se isso pode acontecer também teria hipótese de sentir. Só tive de arranjar uma forma de te ampliar a sensibilidade e aproveitei para te por lenços que sabes que adoro. Juntar o útil..
- Tu não existes. Estou tão feliz. Mas não era preciso isto para me pores lenços. Somos tão amigos que podes por sempre que quiseres. Eu já sei que gostas.
- Sei mas não quero abusar. Mas desta estou muito orgulhoso porque a minha perversão por lenços foi útil. Teve valor para alguém.
 - Perversão! Que exagerado. Acho tão giro como ficas tímido quando uso.
- Ficas tão gira...
- Obrigada.
- Este dia está a ser ótimo.
- Pois é mas está a entardecer.
- Vamos ter de caminhar de volta.
- Vamos. Mas posso fazer-te um pedido?
- Claro.
- Vendas-me assim mais vezes? Eu trago um lenço.
- Adorava. Tu sabes.
- Sei...
- Então eu vendo-te todas as vezes que quiseres.
- E eu trago lenços sempre que tu quiseres.

 Voltamos as nossas casas e, agora, Clara acreditava...


QT















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